quinta-feira, 18 de agosto de 2011

ENTREVISTA - JOSÉ MORAIS

Aluno tem que fazer ditado

Um dos graves problema da educação brasileira é a incapacidade de
alfabetizar as crianças nos primeiros anos de escola. A última Prova Brasil
mostra que 40% dos alunos do 5º ano não conseguem ler e que cerca de 70% não
entendem o que lê. Professor da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica,
e doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, o português José Morais
defende a volta dos ditados, o treino da caligrafia e a ênfase na escrita
cursiva como instrumentos que contribuem positivamente na alfabetização de
crianças. Também critica a prática construtivista, tão difundida em escolas
brasileiras, ao negligenciar aspectos cruciais do processo de alfabetização.
Membro da Comissão Científica do Plano Nacional de Leitura de Portugal, José
Morais integrou um grupo de sete especialistas que, em 2003, avaliou
práticas e políticas no Brasil relacionadas à alfabetização.
“Impressionou-me a atitude de professores, altamente motivados, conscientes
da sua missão e desejosos de mudança”, destacou, complementando que o País
precisa ajudar esses docentes. José Morais estará em Jaboatão dos
Guararapes, quarta-feira, para participar do seminário Alfabetização:
evidências científicas internacionais sobre o que melhor funciona, promovido
pelo Instituto Alfa e Beto (IAB), em parceria com a Secretaria de Educação
de Jaboatão. Por e-mail, ele concedeu entrevista à repórter Margarida
Azevedo.
JC – Existe uma idade certa para iniciar a alfabetização de uma criança? Em
que tempo ela deve estar alfabetizada? Para o Ministério da Educação, no
Brasil, a meta é que todas as crianças brasileiras saibam ler e escrever até
os 8 anos de idade.

JOSÉ MORAIS – Não, não existe. Segundo os países, começa-se entre os 5 e os
7 anos. Aos 5 anos, a criança está cognitivamente e emocionalmente preparada
para aprender a ler, mas a sua alfabetização não fica comprometida se a
sociedade decide que a alfabetização sistemática na escola começa mais
tarde. No entanto, é útil que a alfabetização sistemática seja precedida por
uma preparação bem orientada de pelo menos um ano ou dois.

JC – Alfabetização começa em casa? Como os pais podem contribuir na
alfabetização dos filhos?

JOSÉ MORAIS – Pelo menos a preparação à alfabetização começa em casa. Boa ou
má, começa sempre. O melhor serviço que os pais podem fazer aos filhos nesta
matéria é terem muitos livros, revistas e jornais em casa, e lerem muito,
eles mesmos. Se substituírem uma hora de televisão (por exemplo na hora da
telenovela, depois das notícias) por leitura de livro e jornal, estarão
contribuindo muito para a alfabetização dos filhos, e ainda mais se também
conversarem com eles, falando-lhes eventualmente sobre o que estão lendo.
Além disso, há as leituras partilhadas, há as explicações a respeito das
características dos textos e, conjuntamente, a chamada da atenção da
criança, inclusive através de jogos, para as propriedades estruturais e
formais da língua, em particular das propriedades fonológicas mas também das
morfológicas e sintáxicas.

JC – Qual a importância de basear as práticas de alfabetização em
conhecimentos científicos?

JOSÉ MORAIS – Aprender a ler e escrever é um longo processo, extremamente
complexo que se passa na mente da criança e que é influenciado por muitos
fatores, quer biológicos quer socioculturais, quer experienciais. Hoje não
sabemos tudo, nunca saberemos tudo, sobre os processos de aprendizagem em
geral e sobre aqueles que são específicos à leitura e à escrita. Mas, graças
ao desenvolvimento da psicolinguística experimental e das ciências e
neurociências cognitivas, já sabemos muito, e até começamos a identificar,
com uma grande precisão, as estruturas que são ativadas no cérebro,
inclusive em que sequência temporal, quando a criança é confrontada com
palavras ou um texto ou ainda quando recebe uma tarefa de escrita. Esse
conhecimento pode ser aproveitado para facilitar e orientar a aprendizagem,
em particular elaborando aqueles programas escolares e métodos de ensino e
desenvolvendo aquelas práticas pedagógicas que serão os ou as mais eficazes.

JC – Observando a alfabetização, onde a teoria construtivista falha?

JOSÉ MORAIS – Aquilo que é apresentado no mundo da educação brasileira como
sendo a teoria construtivista só muito longinquamente se relaciona com o
construtivismo em filosofia ou em psicologia cognitiva. Relativamente ao
construtivismo a que se refere, há que distinguir entre o fracasso da teoria
e o da prática. Uma teoria não falha nem tem sucesso, é mais correto dizer
que ela é corroborada pelos fatos ou que, ao contrário, é falsificada por
eles. A teoria construtivista em matéria de leitura e escrita não é aceita,
e direi mesmo é descartada, pela comunidade científica.

JC - Por quê?

JOSÉ MORAIS - Primeiro, porque a evidência em que se baseia é muito magra e
obtida em condições que não respeitam as exigências científicas atuais (por
exemplo, recurso quase exclusivo a entrevistas e questionários que não são
suscetíveis de pôr em evidência nenhum dos processos inconscientes que têm
lugar no cérebro e na mente). Em segundo lugar, porque toda a ciência atual
da leitura e da escrita se desenvolveu e continua a desenvolver-se na base
de hipóteses e de verificações empíricas às quais esse construtivismo é
alheio. Quanto à prática construtivista, essa sim, pode-se dizer que falhou.
A primeira razão está no fato de não ter fundamento científico, e a segunda,
provavelmente, no fato de ter negligenciado aspectos cruciais do processo de
alfabetização, como o papel das habilidades fonológicas, da decodificação e
a importância destas no desenvolvimento dos processos automáticos de
identificação das palavras escritas.

JC – Como o senhor avalia a formação dos professores nas universidades,
sobretudo no aspecto da formação para alfabetização?

JOSÉ MORAIS – Não conheço de perto a formação dos professores nas
universidades mas, pelos contatos que tenho tido com muitos deles, infiro
que a sua formação é claramente insuficiente, o que não é característica
exclusivamente brasileira, pois mesmo em países desenvolvidos em que o
resultado das crianças é muito melhor (é o caso da França) do que o das
crianças brasileiras, a formação dos professores constitui um problema
sério. O que me inquieta mais, na percepção que pude ter a partir desses
contatos, é que não vejo desenvolver-se nenhuma iniciativa séria suscetível
de melhorar a formação. Como formar bem os professores, se os próprios
formadores estão na sua grande maioria insuficientemente formados? Para
mudar radicalmente a situação, seria necessário que nas universidades
aparecesse um número importante de professores e pesquisadores em
psicolinguística experimental e em psicologia das aprendizagens, com uma
formação científica sólida e atualizada. Como conseguir isso não sei, mas
gostaria que os mais altos responsáveis pelo ensino universitário e a
pesquisa científica refletissem sobre esta questão e agissem nesse sentido.

JC – O senhor participou de um grupo de especialistas que avaliou a
alfabetização no Brasil. O que mais chamou a atenção na experiência
brasileira (positivamente e negativamente)?

JOSÉ MORAIS – O que mais me impressionou negativamente foi a falta de
espírito científico e de conhecimento científico no mundo da educação
brasileira. Como este mundo corre atrás de ideias aparentemente sedutoras,
sem refletir criticamente, e cria ídolos sem sequer conhecer bem o que
fizeram ou escreveram! É impressionante! O que mais me impressionou
positivamente é que também há neste País homens e mulheres inteligentes,
competentes e corajosos que querem mudar a situação. São muito poucos ainda
e esbarram contra mentalidades imobilizadas e provavelmente interesses
protegidos. Mas também me impressionou muito favoravelmente a atitude de
muitos professores e responsáveis locais que são altamente motivados,
conscientes da sua missão e desejosos de mudança. Têm de ser ajudados!

JC – O que podemos aprender com as mudanças implementadas por países como a
Inglaterra, França e Estados Unidos, que reviram suas práticas de
alfabetização?

JOSÉ MORAIS – Imenso! Se os responsáveis pela política educacional e de
alfabetização do Brasil quiserem saber o que foi a experiência do
Observatório Nacional da Leitura na França e do atual Plano Nacional de
Leitura de Portugal, de cuja comissão científica faço parte e para o qual
orientei um estudo empírico sobre os níveis de referência na leitura e na
escrita do 1° ao 6° ano de escolaridade, terei todo o gosto em informar-lhes
e em pô-los em contato com os responsáveis por aqueles organismos, em
particular a Secretaria de Estado para o ensino primário e secundário de
Portugal que coordenou comigo o grupo de trabalho que efetuou aquele estudo.

JC – Prática comum nas escolas brasileiras em décadas passadas, o ditado, a
cópia de textos e o uso de cadernos de caligrafia praticamente não existem
mais. Qual sua opinião sobre esses instrumentos?

JOSÉ MORAIS – Penso, de acordo com os estudos científicos realizados sobre
essas questões, que o ditado é importantíssimo para a consolidação das
representações ortográficas das palavras e a avaliação deste conhecimento, e
que o treino da caligrafia e de modo mais geral da escrita cursiva é
importante para um desenvolvimento completo das habilidades de escrita. Há
estudos que mostram, por exemplo, que desenhar manualmente as letras no
início da alfabetização tem uma influência considerável no próprio
reconhecimento e discriminação das letras. Quanto à cópia, creio, não por
evidência direta, mas por extrapolação a partir de outros estudos, que a
cópia de palavras que foram trabalhadas para aquisição de vocabulário e da
sua forma ortográfica é mais pertinente que a cópia de texto.

JC – Embora tenha melhorado o desempenho nas duas últimas edições do
Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), realizado a cada três
anos, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
o Brasil ainda está com resultado ruim. Em 2009, ficou em 53º lugar de um
total de 65 países, no ranking de leitura e ciências. Outras pesquisas
evidenciam que o brasileiro lê muito pouco. Leitura faz diferença no
processo de alfabetização?

JOSÉ MORAIS – É indispensável. Toda a aquisição, consolidação e manutenção
de habilidade exige uma prática constante. Isso também acontece, portanto,
com as habilidades de leitura e escrita. Sem uma prática intensiva da
leitura na escola e fora da escola, nenhuma criança se torna boa leitora. E
o mesmo acontece com a escrita, que é mais exigente cognitivamente do que a
leitura.

JC – O Brasil tem 9,7% da população com mais de 15 anos analfabeta. O maior
problema é no Nordeste, região onde fica Pernambuco, Estado natal do
educador Paulo Freire. O senhor conhece o método freyriano? Se sim,
considera que ainda poderia ser aplicado para reduzir o analfabetismo em
pessoas adultas?

JOSÉ MORAIS – Conheço sim, em particular por ter estado na banca de uma tese
de doutorado que analisou a experiência de Angicos e o pensamento de Paulo
Freire e que incluía entrevistas com ele e com algumas das pessoas que
tinham sido alfabetizadas. O método de Freire era claramente silábico, e ele
não pretendia ter desenvolvido um método original de alfabetização. O método
silábico pode obviamente ser aplicado, serviu e tem servido para alfabetizar
não só adultos mas também muitas crianças, mas tendo em conta o que sabemos
hoje sobre a aprendizagem da leitura não me parece ser o mais eficaz para
assegurar a compreensão do princípio em que repousa a escrita alfabética e o
domínio rápido do mecanismo de decodificação.

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